quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Confissões

O desespero lhe subiu pelas veias.
Um desespero perdido, vazio.
Ela se culpava pelo passado, se decepcionava com o presente e sonhava com o futuro.
No fundo, o seu coração batia como o de todos os outros.
Ela procurava ser fiel a si mesma, sem saber quem era si mesma.
Culpando a qualquer um, ninguém havia lhe dado espaço para pensar, crescer, querer. Mesmo adulta em números, ela tinha o sentimento incômodo de ainda ser uma criança sendo cuidada.
Ela sonhava em rasgar tudo. Partir toda a cera dura de uma vez e sentir suas pernas andando, seus músculos esticando.
O turbilhão embaixo se sufocava com o medo encima, com suas mãos segurando seu peito e seus pulmões, onde o ar não entrava o suficiente.
O medo de não saber; o medo de não ter certeza; o medo de se decepcionar; o medo de se arrepender; o medo de não ser mágico.
E como se atolado na lama, seu corpo não se movia para a frente, impotente.
E nada continuava a acontecer.

Rostos

Ela perdeu o rosto. Ele simplesmente caiu, não se sabe muito bem como. Agora, onde deveria estar o seu rosto havia apenas um pedaço de pele moldado pelos cachos negros que caiam pelos lados.
Só quando chegou em casa se deu conta de que havia perdido aquela parte não tão importante, pelo que as circunstâncias parecem fazer crer. Agora ela apenas se sentava em frente ao espelho, tentando se lembrar onde estava quando provavelmente perdeu aquela coisa que realmente nunca teve uma forma muito bem definida antes por falta de tempo, realmente.
O espelho refletia sua imagem impecavelmente. O reflexo era mais bem definido que a própria realidade. A superfície plana parecia um buraco oco no meio da casa quente e aconchegante onde nada aconteceria, onde tudo sempre estaria bem, em contraste ao mundo meio disforme e incolor do lado de fora da janela. Aquele mundo onde rostos e copros se perdiam sem nunca achar o caminho de volta, em um fluxo interminável de um não-sabe-se-o-que que costuma ser um monte de pessoas andando, mas que normalmente parece só uma massa única e quase etérea.

sábado, 24 de março de 2012

Tornado

E o tempo passou e eu não sei onde eu vim parar, assim como a Dorothy e o Totó quando foram levados pelo tornado. Eu voei e voei e voei, fui levado por cada tempestade que passava, por cada vento que soprava, queimei com cada raio de sol e me molhei com cada gota de chuva, mas ainda não sei onde eu vim parar. E mesmo perdido, continuo andando, desafiando o sr. Destino que decidiu me dar uma provação daquelas. Eu, corajoso, olho para a cara dele e dou altas gargalhadas só para deixá-lo nervoso. Mas, no fundo, eu sei que o momento de tormenta atual é só o começo. O futuro trará coisas piores e é bom eu estar preparado para elas.


quarta-feira, 14 de março de 2012

Palavra

Algumas pessoas tem um certo discurso de respeito a opinião alheia e tolerância com as diferenças, mas, normalmente, eu não vejo essas pessoas agindo da mesma forma que dizem pensar. Daí, se você chega e tenta ter uma conversa sincera com ela, dando suas opiniões e tentando abrir o diálogo, elas ou te ignoram ou criam uma enorme rede de violência gratuita sobre você. Até certo ponto, eu me esforço pra manter a calma, mas, infelizmente, eu herdei o sangue quente da minha mãe querida, então a calma não dura por tanto tempo como eu gostaria. A partir daí, eu prefiro engolir o orgulho, acalmar esse sanguinho quente e sair, mesmo sabendo que a última palavra não foi minha. A propósito, a última palavra não precisa ser sempre minha. Com mais algum tempo e esforço, eu vou aprender a entender isso melhor.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Transcender

Ela estava sentindo o vento frio batendo em seu rosto, na sacada da biblioteca. O vestido preto acompanhava os movimentos do ar. Sua pele estava vermelha, seus lábios brancos, os olhos fechados. Ela tinha os maxilares fortes, inflexíveis, com linhas bem definidas.

Ela ia mudar o mundo. O céu escuro se abria infinito na sua frente, como um enorme titã pronto a engoli-la e rouba-la de todos os seus sonhos. O vento batia cada vez mais frio, as estrelas e a lua brilhavam como faróis acesos. Ela abriu os olhos escuros, refletindo o céu, cheio de espaços vazios e insignificantes.

Ela ia pular da sacada. Sua vida estava um turbilhão, um desastre, uma via sem saída. O bosque escuro lá embaixo parecia não ter chão. Parecia o precipício em que ela pularia e se libertaria, se elevaria, se transcenderia. Ela gostava dessa palavra: transcender. Era a palavra dela. Sim, porque todos tem uma palavra para chamar de sua, uma palavra que defina cada momentinho da sua vida e cada canto da alma. A dela era transcendência.

Ela ia transcender. Ela ia pular no precipício, enquanto olhava para o céu sem fundo, tão assustador por isso. Ela ia fugir do seu corpo e ia para uma terra maravilhosa de sonhos e liberdades.

Ela se virou, deu as costas para o escuro, fechou as cortinas da sacada, pegou uma blusa, desceu para o primeiro andar e saiu de casa. Ela foi andando até o bosque e lá entrou.

Cortando a noite, ela foi cortando o bosque, em busca da transcendência, em busca do imortal, em busca de uma resposta para a única pergunta que ela tinha. Conforme se aprofundava na mata, tudo que encontrava era mais escuridão, eram mais árvores. Quando não aguentava mais andar e o sol já tentava invadir o bosque por entre as copas das árvores, ela se sentou em uma pedra e finalmente permitiu a si mesma sentir a tristeza e a agonia que, até então, se seguravam escondidas dentro dela.

Ela não encontrou nada no bosque. Não encontrou o mundo mágico que queria, nem os seus sonhos, nem as suas respostas, mas apenas um bosque. Dentro do bosque, havia o bosque e nada mais.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Saber o que quer e vulnerabilidade

Saber exatamente o que quer, sem tempo para hesitar, é difícil. Não difícil de existir, mas difícil de se praticar. Principalmente sob pressão, naqueles momentos em que você sabe que a sua habilidade de saber o que quer é o que está segurando a todos e uma pequena falha pode por tudo a perder.

Segurança, auto-estima e um tanto de orgulho são essenciais para aprender a levantar a cabeça e saber o que se quer sem temer represálias. Eu ia dizer "sem temer estar errado", mas mudei de ideia, exatamente porque, saber o que quer significa saber que sempre há o risco de estar errado e de ter cometido o maior erro da sua vida.

***

Descobri, de ontem para hoje, que prefiro infinitamente caminhar a andar de carro. Caminhar, e caminhar bem, exige um certo esforço e um certo sacrifício. Quando se caminha, preconceitos são estritamente proibidos. Conheço várias pessoas (eu também já tive esse hábito) que caminham por certos lugares, mas sem prestarem atenção em nada, sem se conectarem com o lugar, simplesmente por medo, por preconceito com o lugar e com as pessoas dali. Quando se caminha, precisa-se estar disposto a sacrificar sua área de conforto com o objetivo de se conectar com o lugar, de o olhar sem medo, de não ter preconceitos com ele ou com as pessoas que estão ali. Precisa-se estar disposto a se abrir e a se tornar vulnerável ao novo, ao que está fora de tudo aquilo que você conhece e está acostumado.

Esta sensação de vulnerabilidade é uma das melhores experiências do mundo. É ela que ensina que não somos invencíveis e podemos ser atingidos por qualquer coisa, antes mesmo que a vejamos chegar, mas mesmo atingidos, mesmo machucados e invadidos, continuar a andar é a única solução. Quando estamos vulneráveis e dispostos a nos machucar, dispostos a perder,  descobrimos fraquezas que não sabíamos que existiam e fraquezas que achávamos que tínhamos, mas não passavam de mimimi de gente que não saí para conhecer a rua da própria casa.

***

Acho que sem querer escrevi duas coisas que talvez estejam profundamente relacionadas. =D

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Queimadas

No dia 12 de Fevereiro eu fiz aniversário. Logicamente, não fui o único. Outras pessoas também fizeram aniversário, e, ao contrário de mim, ganharam uma festa e presentes. Em um desses casos, um homem decidiu dar um presente a um outro homem, irmão dele. Um presente a altura do que eles eram, homens: uma mulher para estuprar.

Um grupo de sete homens, entre eles, os dois irmãos e alguns amigos, planejaram uma festa de aniversário, onde eles iriam encenar um assalto e estuprariam as mulheres da festa, com exceção de duas, que eram namoradas de dois dos mandantes do futuro estupro coletivo(vocês sentem a dimensão desse termo?). Então, no dia 12 de Fevereiro, enquanto eu era acordado de madrugada para receber parabéns por telefone, sete homens estupravam seis mulheres, todas conhecidas, colegas de trabalho deles. Duas dessas mulheres conseguiram identificar os estupradores, provavelmente arrancando a máscara que um deles usava. Essas duas mulheres foram assassinadas.

E essa não é a primeira vez em que eu me pego tendo nojo e vergonha de ser homem. Não, não é nojo e nem vergonha alheia, é nojo e vergonha de mim mesmo. É nojo e vergonha de saber que eu pertenço à mesma parcela da sociedade responsável por casos como o de Queimadas.

Eu não consigo imaginar como um grupo de sete homens, entre eles pessoas próximas às vítimas, tenham friamente planejado tudo o que foi feito. Eu não consigo imaginar como, em um grupo de sete homens, nenhum deles, um, apenas um, não tenha parado e não tenha dito não. Apenas UM que tenha se dado conta do que eles estavam prestes a fazer, poderia ter sido o suficiente para impedir, nem que fosse indo à polícia e denunciando.

Como sete homens, vendo o terror estampado nos rostos daquelas mulheres, foram capazes de estuprar e matar, sem ter parado para pensar, sem ter parado para considerar o que era tudo aquilo? Muito provavelmente, eles estavam imaginando que aquilo era apenas uma brincadeira de homens. Calma aí, pessoal, é só uma brincadeira! É só uma piada, ha ha!

Uma brincadeira cujo brinquedo eram as mulheres. Mulheres que foram estupradas e foram mortas. Mulheres que eram conhecidas, "amigas", daqueles homens.

Mulheres que, como sempre, foram vistas, foram usadas como objetos sem valor, sem consciência, sem desejo, sem medo, sem uma vida inteira nas costas. Eram mulheres que trabalhavam, estudavam, tinham família, tinham sonhos, tinham relacionamentos, tinham suas mágoas, tinham suas felicidades, mas que, naquele momento, não passaram de objetos que não chegaram ao nível da masculinidade daqueles homens. Não eram dignas do respeito das criaturas superiores que são os homens (sim, eu estou sendo irônico). Mulheres que não valeram mais que o desejo sexual, o desejo de "provar que sou Homem", não valeram mais que um presente de aniversário.

Blogagem coletiva de repúdio ao caso de estupro como presente de aniversário.

Alguns links sobre o assunto:
http://escrevalolaescreva.blogspot.com/2012/02/estupros-como-presente-de-aniversario.html
http://www.renatacorrea.com.br/ser-paga-ou-ser-pega-a-logica-da-propriedade-e-o-estupro-de-queimadas
http://blogueirasfeministas.com/2012/02/chamada-blogagem-coletiva-repudio-estupro-presente/
http://borboletasnosolhos.blogspot.com/2012/02/este-post-faz-parte-da-blogagem.html

O cetro

Tudo que eu queria era ser o senhor do tempo. Com o meu cetro, eu controlaria os ponteiros do relógio de plástico preto, que repousa na prateleira de vidro parafusada na parede azul do meu quarto, cuja decoração eu detesto com tanta força.

Com o meu cetro de diamantes, eu faria a roseira do meu quintal florescer e ser a roseira mais linda já vista. Com meu cetro, eu faria a próxima semana chegar logo. Com o meu cetro, eu faria o momento de crise passar em menos de um segundo daquele relógio preto lá de cima.

Com meu cetro de ouro, eu faria as pessoas que eu amei, mas que já se foram, voltarem. Com meu cetro, eu faria com que as pessoas que eu amo, nunca se vão. Ser o senhor do tempo me permite ser egoísta desse jeito. Eu traria a tempestade mais rápido, só para ouvi-la batendo no meu telhado. Mas então, eu faria ela ir embora o mais rápido possível, depois de me lembrar que existem pessoas que não podem se proteger dela, e por isso, sofrem muito, tudo às custas dos meus privilégios.

Com meu cetro de madeira, eu faria a dor passar logo e nunca mais permitiria que ela voltasse. Com meu cetro, eu faria o mundo rodar mais rápido, até o ponto onde não há mais miséria nem sofrimento. Com meu cetro, eu me levaria até o meu último minuto de vida, só para ver como é e depois voltaria no tempo antes que este minuto acabasse.

Com meu cetro de barro, eu tentaria salvar o mundo, porque eu sempre achei que isso fosse uma obrigação minha. Com meu cetro, eu me levaria até o dia em que eu começarei amar e a ter orgulho de mim. Até o dia em que o medo já terá deixado de existir e eu confiarei em mim mesmo.

Com o meu cetro, eu controlaria o tempo.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Emma - Parte 3

Mais uma vez sozinha, mas não por muito tempo desta vez. O rosto sem maquiagem, o mesmo vestido de veludo verde da noite passada e mais um drink nas mãos enquanto fechava as cortinas e arrumava uma pequena e elegante maleta.

Ela foi até a cozinha, jogou o resto do drink na pia, jogou o casaco de pele nas costas, pegou a maleta e saiu de casa, deixando a porta aberta, mostrando a sala escura no fundo, com a vitrola em silêncio e o divã fora do lugar. Quando chegou no pé da escada do hotel, ela se sentou em um degrau, tirou um par de sapatos masculinos(bem mais confortáveis) da mala e os calçou. Ninguém ia vê-los por baixo do vestido mesmo. Mas ainda assim, ela entrou sorrateira no banheiro que havia no saguão e se maquiou rapidamente antes de sair para rua.

Era natal e a neve começara a cair e sem saber ao certo para onde ir, Emma continuou andando. A luz dos postes e dos faróis dos automóveis que passavam comemorando iluminavam sua cabeça baixa, a mão segurando o casaco fechado, a outra carregando a maleta. A barra do vestido já estava bem molhada a essa hora e se agarrando nos seus pés. O jazz tocando nos bares enquanto as pessoas dançavam sorridentes como podiam.

Cinco quarteirões muito movimentados depois, ela achou outro hotel em que poderia se hospedar por algum tempo com o dinheiro que roubou dos bolsos do seu ex-amante antes de sair. No quarto, ela tirou a maquiagem e toda a roupa, menos os sapatos e a lingerie, então se jogou na cama, exausta e ainda muito confusa sobre ter "fugido" e sobre o que iria fazer. O quarto aquecido logo a fez adormecer como nunca havia antes.


Esqueci o título

Por algum tempo, ele acreditou que sua vida não seria muito diferente da vida da maioria das pessoas. Por algum tempo, isso o deixou triste, pois ele era um homem de tantos sonhos! Por algum tempo, ele acreditou que a sua vida não seria nada mais que um precipício, que a sua vida seria totalmente o oposto de todos os seus sonhos e que ele nunca iria se livrar da completa frustração.

Por mais algum tempo, a vida dele foi realmente frustrante, onde nada dava certo, onde não existiam saídas para seus problemas, onde a perspectiva de um futuro feliz e agradável se pôs de lado, conformada com a ideia de que teria que esperar por um bom tempo.

Ele decidiu, e isso sou eu prevendo o futuro (mais um futuro repleto de sonhos, como se ele já não tivesse o suficiente), que iria deixar o tempo passar e deixar as coisas se encaixarem sozinhas por enquanto. Ele decidiu se conformar com a ideia de que não há mais nada que ele possa fazer, mas esperar.

Acontecesse o que acontecesse, viesse o que viesse, ele teria que lidar da melhor forma possível com o que tivesse nas mãos e a ideia de que sua hora iria chegar, e ele logo teria a chance de se pôr em ação, o excitava infantilmente.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Uma Ficção

Quando ela era pequena, mas bem pequenininha mesmo, ela gostava de brincar com bonecas, assim como todas as garotas da idade dela costumam gostar. Mas, ao contrário de todas as garotas da idade dela, ela não imaginava histórias onde ela era a princesa e havia o príncipe que vinha lhe salvar. Não. Ela imaginava que ela era a prefeita de uma grande cidade. Sim, exatamente, nada de castelos, nada de princesas inocentes com vestido cor de rosa, na de príncipes viris em cavalos brancos, mas prefeita.

Ela também gostava de ler muito, mas muito mesmo, principalmente livros repetidos. Ela gostava de se imaginar como uma das personagens do livro e em como ela agiria na situação narrada. Ou, às vezes, ela se via como a autora do livro sendo entrevistada em grandes programas e andando em tapetes vermelhos.

Quando ela assistia a um filme, ela interpretava a protagonista na solidão do seu quarto, usando alguns cobertores como figurino.

Quando ela cresceu, ela começou a ficar sozinha em casa e sua inocência começou a ir embora junto com sua imaginação. Ela começou a ser responsável por várias coisas e ela se tornou o contrário do que era. De "risadinha", como era chamada pelo seu pai, para uma menina sem cor, que perdeu a paixão pelos livros que tanto amava, que perdeu a paixão pelos filmes que protagonizava, que perdeu a paixão pelas músicas que cantava no chuveiro, que perdeu a paixão por si mesma.

Mas, apesar de tudo, ela ainda sentia umas cócegas bem lá no fundo do peito, onde era bem difícil de alcançar. Mas ela sentia. Ela sabia que havia algo ali e ela se decidiu a não deixar aquilo fugir. Por um tempo, ela tentou se encontrar. Ela encontrou sua paixão na arte, na música e na moda. Aos poucos, a realidade voltou a lhe estapear e ela perdeu a paixão por tudo aquilo que fazia seu coração bater, de novo.

Um dia, ela se viu só, vazia, mais do que nunca. Ela se viu sem emprego, sem faculdade, um fracasso. Ela se viu sem paixão, sem graça, sem cor, sem sorriso. Ela se viu se forçando a sorrir, se forçando a parecer alegre e satisfeita. Mas tudo que ela sentia era vazio e vergonha. Uma vergonha insuportável que travava seus membros, que pesava seus ombros e curvava sua espinha.

A menina que sonhava em ser prefeita ao invés de princesa se escondeu com medo, mas isso não significa que ela foi embora. Ela ainda está lá e a mulher de agora sabe disso e vai dedicar sua vida a não deixar essa menina morrer.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Liberdade


Liberdade é indefinível, assim como grande parte de tudo o que há no mundo, em termos de subjetividade e dignidade humanas. A liberdade é indefinível, porque ela é relativa; o seu entendimento depende de diversos fatores e circunstâncias, sendo a mais importante, a realidade em que cada pessoa existe.

Para alguns, sendo esta a que pode ser considerada a mais próxima de uma eventual definição, liberdade é o poder de questionar tudo ao redor e agir de acordo com esses questionamentos e conclusões deles provenientes. Porém, para outras pessoas, como aquelas que literalmente morrem de fome e miséria (não só na África, como muitos afirmam, mas no mundo inteiro), liberdade talvez seja outra coisa, liberdade talvez seja um prato de comida e um teto para os filhos.

Existem outros lugares, como Israel, Irã e outros vários (a maioria) países do Oriente Médio, onde a definição (ou indefinição) de algo chamado liberdade nem ao menos existe. Nesses lugares de extrema repressão dos Direitos Humanos universais, liberdade é mantida em segredo pelas autoridades, já que não é interessante para o governo que as pessoas saibam daquilo que podem e deveriam ter, mas que só vão conseguir lutando.

Existe certo senso comum que diz que, problemas como o citado acima, relacionados à repressão da liberdade, só existem nos também já citados países do Oriente Médio. A repressão da liberdade por parte dos governos existe em escala mundial, não apenas em um único continente, ou parte de um, porém tem-se a ilusão de que os ocidentais possuem liberdade de pensamento e ação total. A realidade é que, felizmente, existe uma noção do que é liberdade e de como consegui-la nos países ocidentais, que não há em certos lugares do globo, o que não significa de forma alguma que os ocidentais gozam dessa liberdade total da qual tanto se gabam.

A liberdade, apesar de indefinível, apesar de relativa, é um direito de todos os seres humanos. É ela que dá a consciência do mundo e de seus problemas e possibilidades, mas, infelizmente, ela só vem com luta. A liberdade só vem para aqueles que não se prendem a si mesmos com conformismos e se entregam ao conhecimento e à dúvida constante do mundo e da realidade.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Um conto épico

Para ouvir enquanto lê




Ele coçou os cabelos sujos, fungou e olhou pra baixo, para as pernas cruzadas no melhor estilo "índio" de ser. Pernas com calças imundas de barro endurecido. Mesmo depois de cortar a noite acordado, ele ainda pensava em como ia escapar das correntes amarradas nos seus tornozelos e presas ao chão de terra batida.

Ele coçou o pescoço olhando para as grades ao seu redor, com um misto de cinismo e conformismo. Suspiro. As mãos caíram como mortas no chão. A cabeça ficou caída por cima do peito.

- Ai, ai.

Ele levantou. Suas roupas estavam podres. Sua camisa quase não mais existia, deixando a mostra um peito coberto de barro e sangue secos.

Do lado de fora da prisão de pedra e metal, rodeada pelo mais bravio dos mares, centenas de soldados vigiavam as águas e os céus a procura de qualquer ameaça.

Longe, bem longe, onde a vista dos guardas não podia alcançar, um enorme navio estava ancorado, esperando uma decisão. Dentro dele, uma mulher, vestida como homem, com duas espadas na cintura e olhos fundos como um precipício, se debruçava sobre um enorme mapa daqueles mares e suas terras. Três homens à sua frente a olhavam também esperando uma decisão.

Do outro lado da prisão, paralela ao navio e tão distante quanto, uma mancha verde começou a subir em espiral, da mais profunda vala daqueles mares, até a superfície, formando uma espécie de crosta na superfície da água. Ele também estava esperando.

Longe da ilha, longe dos mares, fossem quais fossem, em um outro castelo, muito mais bonito por fora, uma mulher, vestida como rainha, olhava pela janela dos seus brancos aposentos, com os braços cruzados sobre a barriga. Toda ela refletia a luz do sol, tanto na sua pele sem cor alguma, quanto no seu cabelo loiro, quanto nas suas vestes alvas. Em outro aposento, na ponta de uma mesa de metros de comprimento, um homem, vestido de rei com uma longa e majestosa capa vermelha, dava ordens.

- Preparem o navio para buscá-lo imediatamente, antes que o indesejável aconteça.

Uma lágrima escorreu pelo rosto da rainha, que não fazia a menor ideia do que iria acontecer.

Uma das carruagens reais, carregando o capitão do navio real, com cinco cavalos, saiu na sua máxima velocidade em direção ao mar.

A mulher vestida de homem se levantou, olhou para os três homens à sua frente.

- A resposta é sim.

Os três homens saíram correndo pelo navio, gritando ordens, puxando cordas, pondo o trabalho a todo vapor.

A mancha verde começou a aumentar e escurecer. Do seu centro, uma pequena rachadura apareceu e foi se alastrando aos poucos, depois aos montes.

O capitão chegou ao seu navio pronto para sair em sua total velocidade. O navio da mulher saiu em sua total velocidade. O ar cortava a madeira e os rostos de todos os tripulantes de ambos os navios.

A mancha verde já se rachara em todo seu perímetro. Seu centro, onde começaram as rachaduras, de repente se levantou e dali a criatura pulou para fora, se jogando para o alto, explodindo toda a crosta verde, inundando o próprio mar com ondas que chegariam em todas as ilhas ao redor. O mar se revoltou em um redemoinho enquanto os tentáculos do colossal meio homem meio besta clamava seus poderes, criando torres e colunas e chaminés de água azul, nuvens negras, céu vermelho e vento cinza. As escamas do seu corpo se eriçavam, o seu rosto se contraia todo em uma expressão difícil de entender.  Depois de toda a epifania marítima, ele parou, olhou para onde se encontrava a prisão e gritou o seu hino de poder divino e eterno, criando ondas gigantes que correram naquela direção, carregando seus pesados tentáculos verdes em uma velocidade até então desconhecida.

O homem encostou a cabeça nas barras de ferro, tentando ouvir alguma coisa em meio a tanto silêncio. Então, ele sentiu. Ele sentiu a vibração no ar, o cheiro a que ele estava tão acostumado. Seus pelos se arrepiaram e ele suspirou mais uma vez, sabendo o que deveria esperar, e sabendo que não era nada bom.

A mulher, no alto dos seus gritos de ordem pelo navio avistou o castelo sujo, caindo aos pedaços. Seus olhos se encheram de lágrimas, seu coração apertou, sua barriga esfriou, seus lábios sorriram. Ela olhava o castelo apaixonada quando quatro tentáculos abraçaram a ilha inteira de uma só vez, e a puxou para o fundo. De longe, ela via a parte homem se erguendo acima das torres, com seus tentáculos esmagando e batendo e puxando.

- PREPAREM-SE PARA ATACAR! ela gritou com toda a força do mundo.

Com uma das mãos, o monstro jogou a parte superior do castelo de lado. Ele abriu sua boca e soltou um grito agudo e rouco, olhando para dentro dos aposentos, procurando.

Apesar da mulher ter dado a ordem, o primeiro a atirar foi o navio real, com os seus incontáveis canhões, além dos incontáveis navios menores que vinham atrás, dando suporte bélico ao maior.

O navio de madeira negra da mulher começou a atirar também. Apesar de menos canhões, o navio negro era mais forte e resistente que o navio real.

E a ópera começou.

[continua]

Pedras Brancas

Pela primeira, comprei um livro pela Estante Virtual. Foi Lolita do Vladimir Nabokov, por R$1,99. Sim, eu comprei um livro por apenas R$1,99. Gente, isso é um absurdo ( no melhor sentido, claro). Infeliz de mim, que não conheci  esse site antes de pagar mais de cinquenta reais por livros que não tem metade da importância que Lolita tem. Enfim, ao efetuar a compra, eu esperava que tudo ocorresse da forma mais informal possível, como sempre acontece em compras online, principalmente para quem está acostumado a só comprar livros pelo Submarino. Mas, qual não foi a minha surpresa ao receber um e-mail do vendedor que eu escolhi para comprar o livro?

Pausa para explicação:
A Estante Virtual é uma espécie de "guia" de sebos de São Paulo. Quando você vai comprar um livro, você escolhe qual o sebo que julga melhor e então compra dele. O site, no fim, funciona apenas como uma ligação entre o vendedor e o comprador.
Fim da explicação.

O primeiro e-mail foi apenas para agradecimento pela minha escolha. O vendedor, através de suas palavras, se mostrou tão educado e preocupado com a qualidade do atendimento e com o tratamento ao cliente, que meus lábios ganharam vida própria e se abriram em um enorme sorriso. Mesmo que o ocorrido tenha sido tão simples, eu gosto de sentir essa ligação entre as pessoas; essa sensação de respeito mútuo, respeito gratuito, que não existiria em circunstâncias comuns, mas por um pequeno esforço de uma pessoa que nunca me viu na vida, existiu.

Na mesma semana, recebi outro e-mail do vendedor. Dessa vez, ele me mandou uma crônica, que resumirei dizendo apenas que, ela contava a história de como ele se tornou uma espécie de colecionador de pedras brancas recolhidas na praia. Sim, exatamente, pedras brancas recolhidas na praia. Essas pedras brancas são, para ele, um forma de agradecer diariamente a tudo que ele tem. Não que ele não possa desejar ou lutar por algo melhor, mas ele se sente grato por aquilo que tem, pelo privilégio de ter o que tem, seja lá o que for. Tudo isso começou depois que ele recebeu uma pedra do mesmo tipo da filha dele, se eu não me engano. Desculpem. Memória fraca. A partir daí, ele começou a juntar pedras brancas para distribuir para as pessoas, como um sinal de preocupação e respeito.

Ainda na mesma semana, chegou o livro. Junto com o livro, um pequeno embrulho com uma pedra branca minúscula dentro. Ela é do tamanho da ponta do meu dedo mindinho. Talvez menor. Ela também é perfeitamente branca, como um símbolo da paz, de acordo com o próprio livreiro.

Quando eu vi a pedrinha, fui tomado por uma felicidade gigantesca. A única coisa que ficou na minha cabeça foi uma frase bastante estúpida: ainda existe amor em São Paulo. Sim, eu sei que tudo isso pode não passar de uma estratégia de marketing do livreiro em uma tentativa de fazer seus clientes se sentirem especiais e voltarem a comprar dele sempre. Mas mesmo tendo consciência de que essa era a explicação mais provável, não pude deixar de ficar feliz, sorrindo igual a um bobo.

A pedrinha está guardada, mas ao contrário do que ela possa significar para o livreiro, para mim ela sempre estará lá como um lembrete de que o calor humano ainda existe. É só procurar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Where Life Begins

E por essa rua, eu continuo andando, tentando não me abalar, tentando não deixar cair, tentando não deixar... tentando ser de ferro, segurando as esperanças pelas pernas, para que elas não pensem em fugir nem por um segundo. E pela rua eu vou, encarando o ar parado, o calor pesado, a luz seca da lua.

Os ecos mudos do meu pé não atingem meus ouvidos, inundados pelo silêncio do mundo, pelo silêncio que ensurdece. Eu continuo respirando sem dificuldade, o que só mostra que eu vou continuar aqui por um bom tempo e nada está perto de acabar, eu vou ter que ser forte, não há outro jeito. Porque eu não sei o que acontece se eu não for, e, sinceramente, eu tenho medo do que pode acontecer.

Vê aquela porta aberta? Aquela ali, de madeira, aberta? Está começando a chover e pela porta aberta eu posso sentir o cheiro do asfalto deserto sendo molhado, enquanto olho para a lua, sentado no pé da escada. Uma vez, ouvi uma história que dizia que a palavra "lunático" vinha da palavra "lua", pois alguma das muitas civilizações antigas da história acreditava que quem olhasse para a lua, endoidecia. A lua deixava as pessoas lunáticas.

Eu devo ser um lunático. Ou eu devo ser alguém que cansou antes mesmo de começar. Ah, eu esqueci de falar sobre a porta! Sim, aquela de madeira que está aberta, mostrando a chuva cair devagar e elegante, iluminada pela luz amarela dos postes. Eu vou sair por aquela porta. Eu vou sair na chuva, porque eu quero me molhar. Eu vou sair sem ter para onde voltar. Sim, eu vou sair e enfrentar as gotas leves da chuva fraca e interminável. Eu vou sair e enfrentar o ar frio e eu vou cantando pela rua; cantarolando alguma música qualquer só para mim. Só para eu ouvir.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Emma - parte 2

A casa estava em silêncio quando Emma acordou. Ele não estava do seu lado, onde dormira. Ela deixou a cabeça cair no travesseiro suspirando, lembrando da noite passada, com um pequeno sorriso nos lábios, ainda sentindo resquícios do prazer que ele lhe proporcionara de uma só vez, após meses fora.

Um barulho na sala lhe chamou atenção. Ela se levantou, jogando o casaco de pele sobre o corpo nu e foi em direção a porta. Ela encostou um ouvido na madeira fria e ouviu os gemidos ficando cada vez mais altos. Ela abriu a porta.

Havia uma mulher desconhecida (pelo menos para Emma), nua, deitada no divã, com ele entre suas pernas, suando infernalmente. Ele parecia um animal, urrando como um touro. A mulher gemia não se sabia se de prazer ou dor, sendo este o motivo mais provável. Ele ouviu a porta se abrindo e olhou para Emma, petrificada no vão da porta, assistindo a tudo aquilo. Os olhos dela mais arregalados que nunca, a pele sem um vestígio de cor, a boca entreaberta, as mãos que apertavam o casaco tremiam violentamente.

Ele a olhou desafiadoramente, desaforadamente, sorrindo com o olhar, e metendo mais e mais forte na pobre da outra mulher. A cena durou por alguns minutos, onde ele era o o único que se mexia, sem nunca tirar os olhos de Emma.

Depois de algo que pareceu interminável para as duas mulheres, ele fechou os olhos e soltou um urro, que terminou com seu corpo caindo sobre a mulher, a esmagando, como se já não bastasse a outra dor que ela sentia. Quando ela finalmente abriu os olhos e viu Emma parada no vão da porta, começou a gritar histérica.

- SAI, SAI DE CIMA DE MIM!

Ele ria de satisfação, ainda jogado sobre a outra, que o empurrava sem resultados.

Emma - parte 1


Ela pôs o disco pra tocar, abriu as cortinas brancas, revelando a luz celestial do céu tardio. Segurando o pano extra do vestido de veludo verde, Emma foi até o outro cômodo e parou em frente a penteadeira, arrumando a colmeia que fez com os cabelos. Tomou mais um gole do drink que repousava ao lado da coleção de batons de tons claros.

Os olhos injetados de Emma viam seu reflexo sem enxergar muito bem. Ela deu um suspiro de derrota, deixando a cabeça pender um pouco pra frente. Ela se levantou, ajeitou a coluna, estufou o peito, ergueu o queixo. A essa altura, ela já parecia uma verdadeira estátua grega, com a maquiagem marcando bem o queixo, os olhos profundos e frios. Ela voltou para a sala com o drink entre os dedos e sozinha começou a dançar a balada que tocava, cantarolando as partes que sabia, imaginando que estava em uma grande apresentação, cantando para uma multidão infinita de gente escura.

Em alguma poltrona havia um casaco de pele de raposa, que ela logo pegou, no calor da empolgação, jogou sobre os ombros e continuou sua apresentação que entraria para a história. Ela parou no fim da música, exausta demais para performar a próxima. Olhou ao redor mais uma vez, protegendo os olhos da luz que entrava pelos vidros da janela. Ela foi pra cozinha, pôs o copo na pia meticulosamente limpa. A campainha tocou. Ela correu, da forma que era possível correr com um salto, enquanto se segura a calda de um vestido e de um casaco de pele, tentando não se despentear.

Ela parou a música (mas ela continuava tocando na sua cabeça) e abriu a porta com o sorriso mais esplendoroso que possuia. Ela se concentrou no que ia falar, se preparou para a voz perfeita:

- Na hora... - e abriu os dentes em uma cena particularmente sádica. - Entra.

Ele deu um passo e parou em frente a mulher, com o corpo rente ao dela, as bocas quase se tocando. Ele passou os braços ao redor da cintura dela e a puxou para si, dando-lhe um beijo francês ardente. Ela se deixou levar. Ele a levou até um divã e a deitou lá. Foi até a vitrola e pôs a música para tocar, depois foi à cozinha e preparou mais dois drinks para eles. Ela sentada, apenas observava.

Ele a entregou a taça e se sentou à sua frente.

- Então... onde você esteve esse tempo todo? - ela deu mais um sorriso, mas mais fraco, indagador, tímido, temeroso com os olhos baixos, vergonhosos de olhar pra cima.
- Te sustentando. - Ele respondeu olhando pra fora, daquele jeito descontraído característico dele.
-Ah...
- E você? O que tem feito? - ele a olhou, procurando seus olhos. As pernas abertas, os cotovelos apoiados nos joelhos e o drink entre as duas mãos. A cabeça um pouco caída para o lado. Os olhos indagadores, desafiadores, de rei, de homem.
- Cantando...
- Mas você não canta. Você não sabe cantar.
- Mas eu gosto de cantar junto...

Ele riu.

- Então canta. Deixa eu ouvir você cantar.
- Não... - ela respondeu baixinho, sorrindo, as bochechas vermelhas, o cabelo caindo um pouco
- O quê? Eu não te ouvi. Você já está cantando? Eu não ouvi. - ele pôs a mão em concha no ouvido e se inclinou mais para perto.
- Eu não cantei... - ela sussurrou sem o sorriso, mas ainda olhando para o chão.
- O quê?
- Eu não... eu não cantei - ela olhou para ele, ainda com medo nos olhos, as mãos começando a tremer. Ela não olhava diretamente nos olhos dele, mas ele ainda assim podia sentir o medo saindo dela.
- Você não disse que sabe cantar? Eu quero ouvir você cantar. - a voz dele saiu dura, saiu ordem.

Ela o olhou com os músculos tesos, os olhos abertos, prevendo o que viria  a seguir.

- CANTA - o rosto dele estava vermelho, os olhos arregalados, a veia no pescoço saltando. O cabelo caindo por cima da testa, a mão fechada em punho batendo na mesa de centro. Ela levantou de um pulo, o casaco de peles caiu no chão. Ela pôs a taça na mesa um pouco torta a essa altura. Ela andou até a vitrola, de costas para ele, colocou a música para tocar outra vez e começou a cantar o que sabia.

- Vira pra mim. - ela se virou com a cabeça totalmente caída, os braços ao redor do próprio corpo e continuou cantando.

- Levanta a cabeça - ela levantou rápido, mostrando o rosto preto da maquiagem que escorria com o choro silencioso e continuou cantando. Ele levantou, ela levou um susto, piscando e falhando a voz, enquanto sua cabeça se esquivava instintivamente do que ela sabia que viria a seguir.

- Dança comigo? - ela concordou com a cabeça, apertando os lábios. Ele lenta e carinhosamente segurou seus braços e começou a conduzi-la na dança.

- Você já pode parar de cantar se quiser. - a voz doce no ouvido dela. Emma suspirou e deitou a cabeça no ombro dele, aliviada.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Lolita

- Alô? Oi, Bê... você não voltou pra casa?

Ela tentava sorrir para fingir naturalidade e alegria, forçando e contrariando os músculos do rosto e os olhos tristes e desesperados.

Era um final de tarde de um verão extremamente quente. Lolita sentada na cama, cruzando e descruzando os pés, que só há pouco tempo atrás conseguiram alcançar o chão. Com uma mão segurava o fone no ouvido, com os dedos da outra, enrolava o fio esticado do telefone pousado no chão, nervosamente. Os cabelos claros amarrados, um short jeans bem curto e uma camiseta florida lhe davam um ar infantil, de criança besta, intensa, que não sabe o que quer e quer tudo.

- Eu fiquei esperando... - ela sussurrava submissa.
- Que nem uma criança boba. - agora timidamente, com embaraço e frustração.

Ela começou apenas a ouvir e seu sorriso tentou se manter vivo por várias vezes seguidas, morrendo todas as vezes. Aos poucos, os olhos foram voltando a brilhar, o sorriso foi começando a tomar força com as palavras mudas do telefone. Ela sorria para acreditar que estava tudo bem, que ainda havia esperança e que ele ainda ia voltar. Ela sabia que ele não ia voltar e seu coração ardia.

Conforme ele falava, ela ia ficava avermelhada, tímida, com uns dentes brancos e infantis na boca. O fio vermelho se enroscando mais e mais nos seus dedos conforme a luz do sol se esvaia do quarto.

- Eu ainda quero ser sua bonequinha. - disse com voz amarrada, impedida, os olhos começando a vazar, as mãos tremendo. Ela baixou a cabeça, encostando o queixo no peito. Ela não estava mais tentando sorrir e só chorava silenciosamente, soluçando levemente:

- Tá... tá bom... - ela balançava a cabeça concordando.
- Tá... - ela limpou as lágrimas com a manga da camiseta.
- Tá... - fungou.
- Também te amo. - num último sorriso, de saudosismo antecipado e conformismo.

Lolita deixou o fone cair no colchão junto com seu corpo, que só tremia e soluçava.

Lolita se levantou, pegou a jaqueta vermelha, a mochila e saiu do quarto escuro do motel, perdido em algum canto de uma estrada de terra.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Lobotomia


No último dia de inverno, com a neve derretida enchendo o vilarejo de barro, Rosemary se sentava no chão de madeira da sua casa, enquanto olhava pela porta aberta. Um pedaço do sol já podia ser visto. Aos poucos, sua luz foi entrando, invadindo, dando as boas vindas, com um sorriso no rosto, como se fosse uma criança. Lentamente foi subindo pelas pernas nuas da menina, lhe causando arrepios e um fraco sorriso. Havia muito tempo que nada dava tanto prazer à menina como aquele humilde pedacinho de sol, até que ele finalmente bateu em seu rosto. Ela alegremente sentia como se tivesse morrido.

Rosemary sabia que não ia para o céu quando morresse. Sabia que não era digna de estar lá, próxima ao grande e bom deus tão prometido. Ela sabia que não havia salvação para os seus treze anos tão pesados. Mas naquele momento, com o sol acariciando sua pele sem uma ponta de cor, salvação era a última coisa em que pensava. Depois daquele dia, inclusive, a ideia de salvação deixaria de fazer qualquer sentido na cabeça dela, assim como a ideia de felicidade já havia se perdido há muito tempo atrás. O sol iluminava seu peito vazio, os olhos sem lágrimas, sem cor. Seu coração pesava, suas pernas pesavam. Os poucos momentos em que a moça se levantava e andava, eram insuportáveis, como se seus pés fossem feitos de algum metal bem pesado e incômodo, como se ela estivesse andando dentro da água. Durante um minuto, enquanto sentia o sol, ela acreditou que poderia deixar seu corpo em paz.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Redenção

Foi violento. Foi extremamente violento. Uma violência emocional, aquela que só o coração e o âmago da alma podem sentir. Dois corpos nus encostados. Não, não havia amor entre eles. Mas ali eles estavam. Juntos, se pressionando com uma força desesperada. Ali eles estavam. Em contato. Juntos. Não, não havia desejo entre eles. Não, não havia paixão entre eles. Na verdade, o que havia entre eles beirava o ódio mortal e o nojo envergonhado. Não havia nada entre eles.

Eram dois corpos frios, mortos, culpados se tocando. Eram peles de defuntos se tocando, tentando achar o que não se pode achar, o que não se deve achar. Fazendo o que não queriam, mas não podiam deixar de fazer. Foi tão violento, foi dilacerante. Uma alma dilacerada, destruída em infinitos pedaços.

Terminou com vergonha, arrependimento, decepção e gosto de metal boca. Foi sexo injusto. Não, não havia sexo entre eles. Não foi nada, absolutamente nada, apesar de ter tido seu peso, e ah como pesava. 

Então, é nessa sexta-feira 13, que ponho minha máscara e visto minhas fantasias, com medo e nojo de olhar nos olhos, de me ver refletido, de ver meus erros, meus demônios. Ver o que eu não quero ver, ver que não há solução, não há redenção, não há exorcismo, não há salvação. O que há é esquecer, mas esquecer sabendo que sempre vai estar lá o que eu finjo não existir.



quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Sete Demônios


A moça estava com o rosto inchado, com o corpo cheio de feridas, com as mãos amarradas a cordas na frágil madeira da cama. Ela parecia tão pesada mas ao mesmo tempo tão frágil, como se fosse derrubar a cama ao mesmo tempo que fosse se quebrar fragilmente em pedacinhos. O suor escorria violentamente pelo seu corpo etéreo, seus dentes já estavam sujos de sangue e a língua triturada pelos dentes rachados. Seu corpo sem nenhuma cor tremia enquanto as cordas repuxavam sua pele tão quebradiça, arrancando mais sangue ainda, enquanto deixava apenas a carne viva(ou não) à vista. Os olhos injetados, sangue saindo das orelhas e secando sobre suas bochechas.

Ao pé da cama havia um espelho de corpo inteiro, meio velho e sujo, equilibrado precariamente sobre pés de madeira já apodrecida, estava virado para ela, obrigando-a a se ver refletida. Ela abriu a boca e do buraco saiu um ronco, algo parecido como o de um porco, só que bem mais alto e longo. O ronco era pesado, como se estivesse carregando uma enorme bigorna consigo.

Montes de tijolos vermelhos, a lama seca e acumulada, passos dentro da água funda. Um piano sendo derrubado, Atlas carregando o mundo, uma pomba morta caindo do alto do céu, turbilhão no fundo do oceano criando redemoinhos azuis e infinitos, ensurdecedores, pacíficos, burocráticos e devastadores.

O exorcista sempre a frente da moça, sempre a encará-la, esperando ela ter coragem de se olhar realmente.

Ops, agora eu percebo um detalhe: as cordas nunca estiveram presas à cama, apenas aos seus pulsos. As janelas e a porta sempre estiveram abertas e a água benta nunca foi necessária, nem daria muito resultado, realmente. Cair no infinito, sentir o ar no rosto sarando suas feridas, esvaziando seu corpo e coração, sabendo que o chão nunca chegará, a obrigando a se conformar com a queda, com o nada, com a sua morte lenta e sua vida infinita. Ser feliz no precipício. Deixar o turbilhão levar, sabendo que não há outra forma a não ser ser feliz.




domingo, 8 de janeiro de 2012

Os faróis

Ele não sabia mais o que fazer. Naquele momento todas as suas esperanças estavam voltadas ao quadrado de vidro na sua parede, retratando o céu noturno, silencioso como o fim do mundo. De todas as possibilidades que ele tinha em mãos, nenhuma lhe parecia satisfatória.

Uma obrigação, como narrador, seria revelar que para este homem, a situação em que ele se encontrava não era tão rara assim. Ele era indeciso por natureza, e todas as noites eram vazias e silenciosas como o fim do mundo. Na cama, antes de dormir, ele esperava que algum carro passasse na rua deserta e iluminasse a parede  do seu quarto por alguns segundos. Os únicos segundos em que ele conseguia respirar aliviado até dormir.

O medo, a insatisfação, a indecisão eram seus amigos mais íntimos; eram recorrentes na sua vida, apesar de tão movimentada. Seus pés, sempre tão pesados, se arrastavam por onde ele andava, e seus lábios seguravam a sombra de um sorriso.

Naquele momento, a decisão que precisava ser tomada, mudaria sua vida para sempre, e mais uma vez, uma solução que beneficiaria a todos, não lhe vinha a mente. Com lágrimas de um desespero infantil nos olhos, ele foi até a cozinha. Com o coração pulando como um louco, abriu uma garrafa de vinho, encheu um daqueles vidros de maionese usados como copo, e tomou tudo de um gole. Bateu o copo na mesa.

Suas costas doíam. Seus ombros pesavam. A cabeça agora girava. Ele ligou o rádio, tentou relaxar um pouco, mas seu corpo simplesmente não permitia, ele pedia movimento, ele pedia ar. Como estava abafado. Como aquele sofá conseguia ser tão desconfortável? Ai, essa calça que só machuca.

Com  um casaco e um cachecol recém colocados, ele saiu na noite gelada. Estava chuviscando um pouco. Ele pegou um táxi e foi até a Avenida Paulista. Lá, a caminhada começou e foi longa. Por algum motivo, as luzes dos faróis dos carros e o barulho de suas buzinas, principalmente as buzinas, o acalmavam. Lhe davam um pouco de nostalgia, o faziam pensar que ele fazia parte de algo grande, de algo maior. Essa sensação o libertava um pouco.

Essa história não vai ter fim. A grande decisão que ele ia fazer? Isso é problema dele, afinal de contas, quem estava fazendo um estardalhaço desnecessário sobre isso era ele mesmo. Minha obrigação aqui acabou.

P.S.: a imagem foi tirada do site olhares.com e apesar de não ser a Avenida Paulista, traduz parte da história muito bem, obrigado ;D