quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Lolita

- Alô? Oi, Bê... você não voltou pra casa?

Ela tentava sorrir para fingir naturalidade e alegria, forçando e contrariando os músculos do rosto e os olhos tristes e desesperados.

Era um final de tarde de um verão extremamente quente. Lolita sentada na cama, cruzando e descruzando os pés, que só há pouco tempo atrás conseguiram alcançar o chão. Com uma mão segurava o fone no ouvido, com os dedos da outra, enrolava o fio esticado do telefone pousado no chão, nervosamente. Os cabelos claros amarrados, um short jeans bem curto e uma camiseta florida lhe davam um ar infantil, de criança besta, intensa, que não sabe o que quer e quer tudo.

- Eu fiquei esperando... - ela sussurrava submissa.
- Que nem uma criança boba. - agora timidamente, com embaraço e frustração.

Ela começou apenas a ouvir e seu sorriso tentou se manter vivo por várias vezes seguidas, morrendo todas as vezes. Aos poucos, os olhos foram voltando a brilhar, o sorriso foi começando a tomar força com as palavras mudas do telefone. Ela sorria para acreditar que estava tudo bem, que ainda havia esperança e que ele ainda ia voltar. Ela sabia que ele não ia voltar e seu coração ardia.

Conforme ele falava, ela ia ficava avermelhada, tímida, com uns dentes brancos e infantis na boca. O fio vermelho se enroscando mais e mais nos seus dedos conforme a luz do sol se esvaia do quarto.

- Eu ainda quero ser sua bonequinha. - disse com voz amarrada, impedida, os olhos começando a vazar, as mãos tremendo. Ela baixou a cabeça, encostando o queixo no peito. Ela não estava mais tentando sorrir e só chorava silenciosamente, soluçando levemente:

- Tá... tá bom... - ela balançava a cabeça concordando.
- Tá... - ela limpou as lágrimas com a manga da camiseta.
- Tá... - fungou.
- Também te amo. - num último sorriso, de saudosismo antecipado e conformismo.

Lolita deixou o fone cair no colchão junto com seu corpo, que só tremia e soluçava.

Lolita se levantou, pegou a jaqueta vermelha, a mochila e saiu do quarto escuro do motel, perdido em algum canto de uma estrada de terra.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Lobotomia


No último dia de inverno, com a neve derretida enchendo o vilarejo de barro, Rosemary se sentava no chão de madeira da sua casa, enquanto olhava pela porta aberta. Um pedaço do sol já podia ser visto. Aos poucos, sua luz foi entrando, invadindo, dando as boas vindas, com um sorriso no rosto, como se fosse uma criança. Lentamente foi subindo pelas pernas nuas da menina, lhe causando arrepios e um fraco sorriso. Havia muito tempo que nada dava tanto prazer à menina como aquele humilde pedacinho de sol, até que ele finalmente bateu em seu rosto. Ela alegremente sentia como se tivesse morrido.

Rosemary sabia que não ia para o céu quando morresse. Sabia que não era digna de estar lá, próxima ao grande e bom deus tão prometido. Ela sabia que não havia salvação para os seus treze anos tão pesados. Mas naquele momento, com o sol acariciando sua pele sem uma ponta de cor, salvação era a última coisa em que pensava. Depois daquele dia, inclusive, a ideia de salvação deixaria de fazer qualquer sentido na cabeça dela, assim como a ideia de felicidade já havia se perdido há muito tempo atrás. O sol iluminava seu peito vazio, os olhos sem lágrimas, sem cor. Seu coração pesava, suas pernas pesavam. Os poucos momentos em que a moça se levantava e andava, eram insuportáveis, como se seus pés fossem feitos de algum metal bem pesado e incômodo, como se ela estivesse andando dentro da água. Durante um minuto, enquanto sentia o sol, ela acreditou que poderia deixar seu corpo em paz.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Redenção

Foi violento. Foi extremamente violento. Uma violência emocional, aquela que só o coração e o âmago da alma podem sentir. Dois corpos nus encostados. Não, não havia amor entre eles. Mas ali eles estavam. Juntos, se pressionando com uma força desesperada. Ali eles estavam. Em contato. Juntos. Não, não havia desejo entre eles. Não, não havia paixão entre eles. Na verdade, o que havia entre eles beirava o ódio mortal e o nojo envergonhado. Não havia nada entre eles.

Eram dois corpos frios, mortos, culpados se tocando. Eram peles de defuntos se tocando, tentando achar o que não se pode achar, o que não se deve achar. Fazendo o que não queriam, mas não podiam deixar de fazer. Foi tão violento, foi dilacerante. Uma alma dilacerada, destruída em infinitos pedaços.

Terminou com vergonha, arrependimento, decepção e gosto de metal boca. Foi sexo injusto. Não, não havia sexo entre eles. Não foi nada, absolutamente nada, apesar de ter tido seu peso, e ah como pesava. 

Então, é nessa sexta-feira 13, que ponho minha máscara e visto minhas fantasias, com medo e nojo de olhar nos olhos, de me ver refletido, de ver meus erros, meus demônios. Ver o que eu não quero ver, ver que não há solução, não há redenção, não há exorcismo, não há salvação. O que há é esquecer, mas esquecer sabendo que sempre vai estar lá o que eu finjo não existir.



quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Sete Demônios


A moça estava com o rosto inchado, com o corpo cheio de feridas, com as mãos amarradas a cordas na frágil madeira da cama. Ela parecia tão pesada mas ao mesmo tempo tão frágil, como se fosse derrubar a cama ao mesmo tempo que fosse se quebrar fragilmente em pedacinhos. O suor escorria violentamente pelo seu corpo etéreo, seus dentes já estavam sujos de sangue e a língua triturada pelos dentes rachados. Seu corpo sem nenhuma cor tremia enquanto as cordas repuxavam sua pele tão quebradiça, arrancando mais sangue ainda, enquanto deixava apenas a carne viva(ou não) à vista. Os olhos injetados, sangue saindo das orelhas e secando sobre suas bochechas.

Ao pé da cama havia um espelho de corpo inteiro, meio velho e sujo, equilibrado precariamente sobre pés de madeira já apodrecida, estava virado para ela, obrigando-a a se ver refletida. Ela abriu a boca e do buraco saiu um ronco, algo parecido como o de um porco, só que bem mais alto e longo. O ronco era pesado, como se estivesse carregando uma enorme bigorna consigo.

Montes de tijolos vermelhos, a lama seca e acumulada, passos dentro da água funda. Um piano sendo derrubado, Atlas carregando o mundo, uma pomba morta caindo do alto do céu, turbilhão no fundo do oceano criando redemoinhos azuis e infinitos, ensurdecedores, pacíficos, burocráticos e devastadores.

O exorcista sempre a frente da moça, sempre a encará-la, esperando ela ter coragem de se olhar realmente.

Ops, agora eu percebo um detalhe: as cordas nunca estiveram presas à cama, apenas aos seus pulsos. As janelas e a porta sempre estiveram abertas e a água benta nunca foi necessária, nem daria muito resultado, realmente. Cair no infinito, sentir o ar no rosto sarando suas feridas, esvaziando seu corpo e coração, sabendo que o chão nunca chegará, a obrigando a se conformar com a queda, com o nada, com a sua morte lenta e sua vida infinita. Ser feliz no precipício. Deixar o turbilhão levar, sabendo que não há outra forma a não ser ser feliz.




domingo, 8 de janeiro de 2012

Os faróis

Ele não sabia mais o que fazer. Naquele momento todas as suas esperanças estavam voltadas ao quadrado de vidro na sua parede, retratando o céu noturno, silencioso como o fim do mundo. De todas as possibilidades que ele tinha em mãos, nenhuma lhe parecia satisfatória.

Uma obrigação, como narrador, seria revelar que para este homem, a situação em que ele se encontrava não era tão rara assim. Ele era indeciso por natureza, e todas as noites eram vazias e silenciosas como o fim do mundo. Na cama, antes de dormir, ele esperava que algum carro passasse na rua deserta e iluminasse a parede  do seu quarto por alguns segundos. Os únicos segundos em que ele conseguia respirar aliviado até dormir.

O medo, a insatisfação, a indecisão eram seus amigos mais íntimos; eram recorrentes na sua vida, apesar de tão movimentada. Seus pés, sempre tão pesados, se arrastavam por onde ele andava, e seus lábios seguravam a sombra de um sorriso.

Naquele momento, a decisão que precisava ser tomada, mudaria sua vida para sempre, e mais uma vez, uma solução que beneficiaria a todos, não lhe vinha a mente. Com lágrimas de um desespero infantil nos olhos, ele foi até a cozinha. Com o coração pulando como um louco, abriu uma garrafa de vinho, encheu um daqueles vidros de maionese usados como copo, e tomou tudo de um gole. Bateu o copo na mesa.

Suas costas doíam. Seus ombros pesavam. A cabeça agora girava. Ele ligou o rádio, tentou relaxar um pouco, mas seu corpo simplesmente não permitia, ele pedia movimento, ele pedia ar. Como estava abafado. Como aquele sofá conseguia ser tão desconfortável? Ai, essa calça que só machuca.

Com  um casaco e um cachecol recém colocados, ele saiu na noite gelada. Estava chuviscando um pouco. Ele pegou um táxi e foi até a Avenida Paulista. Lá, a caminhada começou e foi longa. Por algum motivo, as luzes dos faróis dos carros e o barulho de suas buzinas, principalmente as buzinas, o acalmavam. Lhe davam um pouco de nostalgia, o faziam pensar que ele fazia parte de algo grande, de algo maior. Essa sensação o libertava um pouco.

Essa história não vai ter fim. A grande decisão que ele ia fazer? Isso é problema dele, afinal de contas, quem estava fazendo um estardalhaço desnecessário sobre isso era ele mesmo. Minha obrigação aqui acabou.

P.S.: a imagem foi tirada do site olhares.com e apesar de não ser a Avenida Paulista, traduz parte da história muito bem, obrigado ;D